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Amigos de Ibirubá
  

Os herdeiros do primeiro bispo gaúcho


       A obstinação de um casal de Encruzilhada do Sul mantém vivo o passado do primeiro bispo do Estado, dom Feliciano Rodrigues Prates, falecido em 1858, em Porto Alegre.
       O agrônomo aposentado Affonso Henrique Mibielli, 58 anos, e a mulher, a ex-bancária Mirna Tauchert Mibielli, 50 anos, herdeiros da casa na qual viveu o religioso, travam uma batalha contra o tempo e a escassez de recursos para conservar intacta a Fazenda da Lapa, reduto que guarda 160 anos de história.
       A propriedade de 500 ha fica a oito quilômetros de Encruzilhada do Sul, onde uma fileira de plátanos conduz à moradia em estilo açoriano que um dia pertenceu a dom Feliciano, sua irmã e a sua sobrinha, Leopoldina Prates da Fontoura, bisavó de Mibielli.
       Dom Feliciano teria comprado a Fazenda São José da Lapa em 1836.
       - Até hoje, contam que ele zelou pelos pobres da cidade. Tudo o que produzia a fazenda, dividia com os carentes - diz a coordenadora do Departamento de Cultura de Encruzilhada do Sul, Elaine Barcelos.
       A casa tem piso de madeira maciça, forro detalhado e imensas portas e janelas originais. Um dos detalhes mais surpreendentes é a capela, ligada à casa por uma janela interna, de onde os familiares podiam assistir às missas rezadas pelo padre aos escravos e empregados da fazenda.
       No local, onde há um pequeno altar, está o missal datado de 1808, usado por dom Feliciano durante as cerimônias. O antigo confessionário, a cadeira de balanço preferida e um aparelho de fabricar hóstias também continuam lá. Dentro de um baú, estão guardadas as batinas do bispo. Carcomidas por traças, as roupas mantêm os bordados feitos com fios de prata e ouro.
       - Me emociono com tudo isso. Por isso faço questão de cuidar desse legado e tenho paixão pela história - confessa Mibielli.
       O ex-agrônomo conta que, em 1853, quando dom Feliciano foi nomeado bispo e se mudou para Porto Alegre, a fazenda da Lapa ficou nas mãos de Leopoldina, sua bisavó. Anos mais tarde, ela se casou com Affonso Mibielli da Fontoura, e a família se transferiu para o Rio. A casa permaneceu aos cuidados de um irmão do avô de Mibielli e depois de um tio.

Mibielli voltou à Fazenda da Lapa depois de aposentado

       Mibielli voltou ao Estado com os pais em 1949, aos cinco anos, para morar em Porto Alegre. Nessa epoca , a fazenda era visitada apenas durante as férias.
       - Era uma aventura porque nem estrada tinha. Levávamos dias para chegar a Encruzilhada. Eu esperava as férias com ansiedade e passava três meses aqui - relembra.
       Somente em 1987, Mibielli se mudou definitivamente para Encruzilhada do Sul, já casado com Mirna, quando o casal decidiu voltar ao velho casarão depois da aposentadoria.
       - Eu morava em Ibirubá, e ele me levou embora. Adoro esse lugar. Apóio o Affonso em tudo e acredito que o passado deve ser preservado a qualquer custo - afirma Mirna.
       Apesar do esforço, o casal enfrenta dificuldades. A casa apresenta rachaduras nas paredes, e o telhado, de telhas de barro artesanais, está se deteriorando. Mibielli sabe que o prédio precisa ser restaurado, mas não tem condições financeiras para fazer as reformas. Além disso, busca a ajuda de profissionais para aprender a conservar peças como as roupas de dom Feliciano.
       - É necessário muito dinheiro para tudo isso. Uma vez, recebemos a promessa de que alguns museólogos iriam nos auxiliar, mas até agora, nada - lamenta.

De capelão militar a líder disciplinador

       Feliciano Rodrigues Prates nasceu em Gravataí, no dia 13 de julho de 1781. Conforme dom Zeno Hastenteufel, autor da tese de doutorado intitulada Dom Feliciano na Igreja do Rio Grande do Sul , o futuro bispo mudou-se com menos de dois anos para Rio Pardo e, aos 15, foi ao Rio de Janeiro para estudar em um seminário, sendo ordenado padre em 1804. Depois, retornou para ser capelão militar no Regimento dos Dragões do Rio Pardo.
       - Ele atuou em guerras durante 30 anos. Cansado e debilitado, decidiu abandonar o oficio - revela dom Zeno.
       Assim, o padre deixou de ser capelão militar.
       - Minha bisavó contava que ele estava tão enfraquecido que lhe indicaram o clima de Encruzilhada para se recuperar - relembra a professora aposentada Dione Teixeira Borges Moreira, 74 anos.
       Enquanto isso, os 10 anos da Revolução Farroupilha enfraqueceram a Igreja Católica. Com a guerra, templos acabaram em ruínas e muitos jovens deixaram de ser batizados. O cenário de desorganização teria contribuído para a nomeação do primeiro bispo do Estado.
       O gaúcho de Gravataí foi consultado sobre a idéia em 1851, ordenado em maio de 1853 e assumiu o cargo em Porto Alegre no dia 3 de julho do mesmo ano.
       Dom Feliciano, que morreu cinco anos após assumir o bispado, em 27 de maio de 1858, ficou conhecido por organizar a igreja no Rio Grande do Sul. Além de reordenar as paróquias, foi disciplinador, atuando de forma rigorosa junto a padres pouco atuantes. Também foi ele, conforme dom Zeno, o criador do primeiro seminário do Estado, na Capital.
       - Por tudo isso, hoje ele dá nome a uma praça e a uma rua em Porto Alegre - afirma o pesquisador.



Transcrito do Jornal Zero Hora, edição de 18/08/2002
Por Juliana Bublitz - Casa Zero Hora/Santa Cruz do Sul


Criada em:
Segunda-feira, 19 de agosto, 2002.
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